Vacinas contra COVID-19 não contêm células de fetos abortados

Movimentos religiosos norte-americanos manifestaram-se contra o uso de células embrionárias humanas no desenvolvimento de novos imunizantes.

O desenvolvimento de vacinas contra o SARS-Cov-2, causador da COVID-19, tem sido alvo de recorrentes notícias falsas no Brasil e no mundo. O aplicativo Eu Fiscalizo, parceiro da iniciativa COVID-19 DivulgAção Científica, identificou mais uma informação enganosa que vem circulando nas redes sociais: a ideia de que algumas vacinas conteriam células de fetos abortados. Isso não é verdade.

A origem desta desinformação parece estar na manifestação de grupos religiosos e antiaborto dos Estados Unidos e do Canadá contra as pesquisas que fazem uso de uma linhagem de células embrionárias humanas, isto é, de células cultivadas em laboratório a partir de uma célula original, retirada de um feto. Pelo menos quatro vacinas em desenvolvimento contra a COVID-19 fazem uso da mesma linhagem celular, e uma quinta candidata faz uso de células embrionárias de outra linhagem.

“Linhagens de células humanas são usadas em várias pesquisas, por exemplo, no desenvolvimento de medicamentos, vacinas e anticorpos monoclonais”, conta a imunologista Cristina Bonorino, pesquisadora da Fundação Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre e membro da Sociedade Brasileira de Imunologia.

A especialista, que trabalha no desenvolvimento de vacinas virais, explica que linhagens celulares de origem humana são usadas como pequenas fábricas de proteínas e vírus. Em alguns casos, é possível usar bactérias para este fim. Porém, em certas pesquisas, a utilização de células humanas é indispensável. “Quando precisamos que o vírus tenha as mesmas características que ele tem quando se replica no organismo humano, precisamos usar células humanas”, complementa.

Linhagens celulares da década de 1970

Pesquisas atuais fazem uso de linhagens celulares cuja origem remonta a décadas atrás. No caso das vacinas contra a COVID-19, a linhagem utilizada em pelo menos quatro projetos, conhecida como HEK-293 – a sigla HEK, em inglês, denota que são células humanas, renais e embrionárias – foi iniciada em um laboratório holandês na década de 1970. A origem foi um feto abortado legalmente no país.

Depois de isoladas, as células foram mantidas no laboratório para continuar se replicando, dando origem a novas células que vêm sendo usadas em pesquisas desde então. Para manter a linhagem, não é necessário utilizar material proveniente de novos fetos.

No interior das células cultivadas em laboratório, os pesquisadores podem fazer as reações necessárias para testar e desenvolver medicamentos e vacinas. “Mas as células não fazem parte da composição dos produtos finais”, ressalta Bonorino. O que compõe as vacinas ou medicamentos desenvolvidos com essa metodologia são os vírus ou proteínas produzidos pelas células, e não as células em si.

Por que usar células embrionárias?

Células humanas adultas têm uma capacidade limitada de se dividir para dar origem a novas células. Por isso, não são as mais adequadas à criação de linhagens celulares para pesquisa. Já as células embrionárias e as células tumorais têm enorme capacidade de divisão e deram origem a linhagens celulares bem-sucedidas.

As células tumorais, embora se multipliquem o suficiente, não são as melhores representantes de células humanas saudáveis. Por isso, com o tempo as células embrionárias tornaram-se importantes para esse tipo de pesquisa. Desde a década de 1960, vacinas contra rubéola, varicela e hepatite A foram desenvolvidas a partir de estudos com células derivadas de abortos eletivos. Segundo Bonorino, porém, as linhagens utilizadas atualmente tiveram origem décadas atrás: “Hoje em dia ninguém mais faz isso”.

Debate ético e métodos alternativos

Nos anos 1950, uma linhagem de células tumorais humanas conhecida como HeLa foi usada no desenvolvimento de vacina contra poliomielite. A linhagem celular teve origem em um tumor cervical que matou uma mulher afro-americana, Henrietta Lacks. Na época, cientistas descobriram que as células tumorais continuavam se replicando mesmo fora do corpo da paciente – ou seja, no meio de cultura adequado, se tornariam, de certa forma, imortais. Mantidas em laboratório, as células foram usadas em muitas pesquisas diferentes. Já falecida, a paciente não autorizou a utilização de suas células para fins científicos. Sua história e o debate ético que envolve o uso de células humanas são tema do livro A vida imortal de Henrietta Lacks, adaptado também para o cinema.

Desde a criação das primeiras linhagens de células embrionárias humanas até hoje, a comunidade científica conseguiu avanços não apenas nas técnicas e metodologias utilizadas para desenvolver produtos farmacêuticos, mas também no estabelecimento de critérios éticos a serem seguidos pelos pesquisadores. “As discussões éticas surgem ao mesmo tempo que as novas tecnologias”, avalia Bonorino. “Por isso, às vezes demoramos anos para amadurecer essa discussão”.

A especialista conta, ainda, que há muitos esforços no sentido de criar metodologias alternativas capazes de dispensar o uso de linhagens de células humanas. “Um exemplo são as vacinas de RNA, totalmente sintéticas. Outros caminhos são a criação de estruturas celulares em 3D, ou a utilização de células vegetais”, pontua, destacando que é importante que a população, e não apenas a comunidade científica, participe do debate em torno da ética em pesquisas: “Estamos vendo, com a pandemia de COVID-19, que todo mundo pode se informar e participar dessa reflexão”.


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