Não existe tratamento precoce contra COVID-19

Combinação de medicamentos conhecida como ‘kit COVID’ não tem eficácia comprovada e desvia a atenção das medidas que realmente podem frear a pandemia: vacinação, distanciamento social, uso de máscaras e higiene das mãos.

Cloroquina ou hidroxicloroquina, ivermectina, nitazoxanida, azitromicina, vitamina D, zinco. Esses são alguns dos medicamentos distribuídos a pacientes diagnosticados com a COVID-19 – um suposto tratamento precoce contra a doença. O coquetel, que é chamado por muitos de “kit COVID”, não tem eficácia comprovada e, portanto, sua prescrição não pode ser considerada uma medida de saúde pública para controlar a pandemia. Segundo especialistas, o principal risco associado ao mito do tratamento precoce é desviar a atenção do fato de que a COVID-19 pode causar casos graves e mortes e, portanto, devemos tomar medidas capazes de evitar sua transmissão.

Recentemente, diretores da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) reafirmaram, repetidas vezes, que não existe tratamento precoce contra a COVID-19. Ainda assim, o tema parece não sumir das redes sociais ou mesmo das medidas tomadas por governantes brasileiros.

No primeiro semestre de 2020, a aposta na cloroquina e na hidroxicloroquina – medicamentos usados para tratar malária e algumas doenças autoimunes – contra a COVID-19 gerou repercussão mundial e foi extensamente estudada em diversos países. Em outubro, a Organização Mundial de Saúde apresentou resultados de pesquisa segundo a qual a hidroxicloroquina, entre outros medicamentos, não teve efeito sobre a mortalidade, a necessidade de ventilação mecânica ou a duração da internação de pacientes com a doença. A recomendação de uso acabou perdendo força em países como os Estados Unidos, mas permaneceu frequente por aqui.

Outros medicamentos, como a ivermectina e a nitazoxanida, não tiveram tanta repercussão global, e seu uso parece estar restrito a poucos países, entre os quais o Brasil. Seus defensores frequentemente justificam-se com base em artigos científicos ainda não revisados por pares, ou cujas conclusões são frágeis. “Para todas essas medicações propostas como tratamentos específicos da COVID-19 (isto é, para combater o vírus), não há evidência confirmatória de eficácia”, destaca o cardiologista Luís Correia, da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, ressaltando que é necessário embasar as condutas médicas em estudos de alta qualidade científica, isto é, confiáveis, com baixo risco de viés e erros aleatórios. A existência de um artigo, isoladamente, não é suficiente para justificar o uso das medicações.

O especialista ressalta, ainda, que a polarização criada, no Brasil, em torno do tratamento precoce da COVID-19 acaba, muitas vezes, invertendo a forma como as evidências científicas embasam medidas de saúde pública. “Não cabe à ciência comprovar a ineficácia dos medicamentos. É o contrário: é preciso que uma substância demonstre eficácia para que se recomende o uso. Sem isso, não se pode recomendá-la”.

Riscos associados

Todo medicamento pode causar efeitos colaterais. Portanto, a decisão de usá-lo ou não envolve avaliar se seus benefícios superam os riscos envolvidos. No caso de um tratamento sem benefícios comprovados, sobram apenas os riscos – alguns já conhecidos, relacionados aos efeitos de cada medicamento no organismo humano, e outros imprevistos. Mas não é isso o que mais preocupa os especialistas, e sim a falsa sensação de segurança gerada pela divulgação do “kit COVID”.

“Se acreditarem que existe um tratamento e que estão protegidas caso sejam contaminadas, as pessoas podem se arriscar mais”, avalia a biomédica Ana Paula Herrmann, do Departamento de Farmacologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. “Existe o risco de as pessoas acreditarem que existe um tratamento precoce e, por isso, deixarem de usar as medidas não farmacológicas de prevenção”. Distanciamento social, uso de máscaras, higiene das mãos, testagem e rastreamento de casos e, agora, vacinação continuam sendo as melhores estratégias para o controle da pandemia.

A especialista lembra, ainda, dos gastos associados à compra de medicamentos sem eficácia, em especial em grandes quantidades, da exploração política do tema por prefeitos, governadores e instâncias federais e de como isso desvia a atenção pública daquilo que realmente importa. “É uma perda de tempo”, diz. E, lembrando a recente crise no estado do Amazonas, onde os hospitais ficaram sem insumos básicos como cilindros de oxigênio, avalia: “Manaus é um exemplo do que pode acontecer quando a gente insiste na existência do tratamento precoce”.

Relatos pessoais versus evidências científicas

A internet está cheia de relatos de pessoas que fizeram uso de uma ou mais medicações do “kit COVID” e sobreviveram à doença. É importante notar que a maioria das pessoas que desenvolve a COVID-19 vai mesmo sobreviver, ainda que não faça tratamento algum. “A mente humana não está acostumada a pensar no contra-factual (se não tivesse tomado, sobreviveria), sendo especialmente propícia a fazer relações causais com baixo nível de evidência”, observa Correia. Relatos de casos isolados, que não fizeram parte de estudos nem passaram por validação, não podem ser considerados evidência científica para embasar condutas médicas.

Herrmann lembra que a dificuldade de encontrar um tratamento específico é típica de infecções virais agudas, como a dengue, a zika e a própria gripe. Ainda que se encontre uma droga adequada, o tratamento encontra dificuldades. “Dificilmente conseguimos iniciar um tratamento antiviral de maneira suficientemente precoce para impedir a replicação dos vírus”, explica. O que se faz, nesses casos, é tentar controlar os sintomas com medicamentos não específicos, como antitérmicos e analgésicos – que não devem ser administrados indiscriminadamente, mas apenas em caso de febre ou dor, por exemplo.

Os dois especialistas entrevistados para esta matéria defendem a importância de basear condutas médicas e medidas de saúde pública em evidências de alta qualidade científica. “Isso nos permite decisões racionais, com mais benefícios em termos da população e dos indivíduos”, afirma Herrmann. “Se houvesse racionalidade, não estaríamos discutindo a hidroxicloroquina até hoje, e nem mesmo teríamos essas discussões polarizadas com relação à vacina”, completa Correia.


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