Distanciamento social na berlinda

Postagens nas redes sociais usam o exemplo da Suécia, que não impôs o fechamento de escolas e estabelecimentos comerciais, para criticar recomendações dos principais órgãos de saúde.

“A Suécia estava certa”, dizia uma postagem replicada nas redes sociais. Seu principal argumento era o de que o país europeu, que não impôs medidas rígidas para promover o distanciamento social, ainda assim viu diminuírem, com os meses, o número de mortes registradas por COVID-19. Seria este um argumento válido para criticar medidas que promovam o distanciamento social no Brasil? Dificilmente.

Logo no início da pandemia, vários órgãos de saúde começaram a recomendar medidas que reduzissem o contato entre as pessoas, como forma de evitar que pacientes contaminados pela COVID-19 transmitissem a doença a terceiros. “Essas medidas foram tomadas com base em estudos de simulação matemática que mostraram que era necessário promover o distanciamento social, no sentido de impedir ou diminuir a transmissão da doença, para que isso não levasse a um congestionamento grave dos sistemas de saúde, que não estavam preparados para atender, de forma simultânea, a todos os casos”, esclarece o infectologista Kleber Luz, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Vários países em todo o mundo adotaram medidas de distanciamento social antes mesmo que a situação da COVID-19 se tornasse grave em sua população. Países como Noruega, Dinamarca e Alemanha conseguiram manter baixos os seus índices de mortos pela pandemia. “O distanciamento social, estatisticamente falando, é a melhor e a mais barata ação que você pode fazer para segurar a dispersão da doença”, avalia o biólogo Marcelo Mendes Brandão, do Laboratório de Biologia Integrativa e Sistêmica da Universidade Estadual de Campinas, acrescentando que, em países que não adotaram ou adotaram tardiamente essas medidas, como Suécia, Inglaterra e País de Gales, houve um pico de contaminação e mortes. “Na Inglaterra, que resolveu fechar vários estabelecimentos a partir do final de abril, dá pra ver que houve uma queda enorme no número de casos. É o efeito do distanciamento”, completa. “Países que promoveram o distanciamento não tiveram pico de mortes”.

Críticas da comunidade científica

O modelo sueco para o enfrentamento da pandemia foi tema de reportagem na revista Science em 6 de outubro. Segundo o texto, as autoridades daquele país tomaram medidas apenas modestas para reduzir aglomerações e, embora parte da população tenha decidido ficar em casa, lojas e restaurantes continuaram abertos. Contatos próximos de casos confirmados de COVID-19 também não foram solicitados a ser testados ou fazer quarentena, como ocorre em outros países. Em geral, a quantidade de testes realizados na Suécia ficou atrás da média de outros países.

Parte da comunidade científica se manifestou publicamente contra a forma como o governo sueco tem lidado com a pandemia, argumentando que o preço dessa abordagem foi muito alto. “A taxa de mortalidade cumulativa do país desde o início da pandemia rivaliza com a dos Estados Unidos, com sua resposta caótica. E o vírus teve um impacto chocante nos mais vulneráveis”, diz a reportagem, citando o alto número de mortes em residências de idosos, cujos doentes, muitas vezes, sequer eram levados aos hospitais. Embora o número de casos tenha diminuído durante o verão no hemisfério Norte, cientistas temem que surja uma nova onda nos meses mais frios, e afirmam que os casos já voltaram a crescer na região da capital, Estocolmo.

Realidade brasileira

Comparar as estratégias usadas na Suécia e seus resultados com o que foi ou poderia ser feito no Brasil seria, no mínimo, falta de cuidado. Afinal, os dois países têm características muito distintas, a começar pelo tamanho do território e da população.

Brandão, que atua na área de bioinformática, tem estudado como a queda no grau de distanciamento social se relaciona com o número total de casos de COVID-19 em algumas regiões brasileiras, especialmente no estado de São Paulo. Alguns resultados já apontam que o relaxamento das restrições corresponde a um aumento significativo no número de casos. “O estado de São Paulo vinha numa certa estabilidade no número de novos casos. No feriado de 7 de setembro, vimos um aumento de 46% no trânsito do estado e, depois, um crescimento também de 46% no número de casos de COVID-19”, exemplifica. “Nosso modelo também indicou que, em algumas cidades do interior do estado, houve pico de casos cerca de 20 dias após as festas das padroeiras. Essas coincidências nos fazem pensar…”

Embora confie que o distanciamento social seja eficaz, o especialista reconhece que não é fácil mantê-lo, especialmente em comunidades mais pobres, onde muitas pessoas dividem espaços pequenos e a maioria dos trabalhadores não pode ficar em casa. Ele também acredita que a reabertura de escolas e estabelecimentos comerciais, observada em diferentes estados brasileiros, não voltará atrás.

Para Luz, a realidade brasileira dificulta o estabelecimento e o cumprimento de medidas rígidas como o lockdown (quarentena) proposto em outros países. “Adotar um lockdown em um país gigante como o Brasil, eu penso que é, na prática, impossível. Temos uma estratificação social muito grande, realidades completamente diferentes”, pondera, chamando atenção para o fato de que apenas parte dos trabalhadores, por exemplo, foi capaz de permanecer em casa sem prejuízo de renda – o que limitou a adesão da população brasileira às recomendações de saúde pública.

“Precisamos pensar em corresponsabillidade. Eu não posso cobrar 100% do governo uma política de distanciamento, nem 100% dos cidadãos”, conclui Brandão. “A falta de organização é o nosso problema. Falta pé no chão, pensar que a gente precisa aprender a conviver com o vírus por muito tempo. Precisamos de políticas sérias indicando para as pessoas o que fazer”.


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